26/08/2022

"A floresta produz mais riqueza do que o gado"

moradora de uma reserva extrativista- Foto Ian Cheibub

Por Philipp Lichterbeck de Marabá

No Pará, moradores de uma reserva extrativista mostram como é possível lucrar com a floresta sem derrubá-la. Mulheres são as principais defensoras dessa tradição e alvos frequentes de ameaças.

Em uma pequena vala no meio do pasto, Claudia dos Santos para o carro. Na beira do caminho, há uma grande cruz de madeira e, ao lado, os restos de uma placa de pedra destruída. "Eles atiraram nela", conta Santos. "O nome do meu tio e da minha tia estavam gravados na pedra. Até hoje somos ameaçados porque protegemos a floresta."

A jovem de 20 anos é sobrinha de José Cláudio Ribeiro, que junto com sua mulher, Maria do Espírito Santo, foi alvejado por dois pistoleiros neste local. O casal liderava uma comunidade extrativista no sudeste do Pará. Os extrativistas coletam e processam frutos da Amazônia, são os agricultores da floresta. Mas o Pará vem sendo desmatado a um ritmo raramente visto em outros lugares do Brasil. José Cláudio e Maria resistiam à destruição e denunciavam madeireiros e pecuaristas ilegais. Até esse contra-ataque brutal.

Um dos pistoleiros foi condenado, assim como dois dos mandantes. Porém, o assassino conseguiu fugir da prisão, e um dos mandantes – um pecuarista que estava de olho em terras da reserva – escapou da polícia. "Vivemos com medo", afirma Claudia dos Santos.

O Pará abriga a segunda maior porção da Amazônia brasileira. Mas madeireiros, pecuaristas, sojeiros e garimpeiros ilegais avançam há anos sobre a floresta, invadindo áreas protegidas, reservas indígenas e territórios de extrativistas. Desde a posse do presidente Jair Bolsonaro, em 2019, eles ficaram mais agressivos. O número de conflitos por terras no Pará é extremamente alto – ambientalistas, indígenas e comunidades tradicionais vivem perigosamente.

Legenda: José Cláudio Ribeiro e Maria do Espírito lideravam uma comunidade extrativista e foram mortos por pistoleiros Foto: Ian Cheibub

Guerra cultural

O termo extrativismo descreve a coleta de frutos que a natureza oferece. A prática é uma resposta importante para a pergunta sobre como é possível viver na região da Floresta Amazônica sem destruir o meio ambiente. "Meu tio e minha tia provaram que o extrativismo funciona", afirma Santos. "Por isso, eles precisaram morrer. Eles mostraram que uma floresta intacta produz mais riqueza do que o gado."

A jovem cresceu numa família de quatro integrantes na comunidade Praia Alta-Piranheira, famosa por suas castanhas-do-pará e que, em 1997, foi declarada reserva agroextrativista pelo Estado. José Cláudio Ribeiro e sua esposa desempenharam um importante papel para que isso ocorresse. Contudo, a demarcação não impediu madeireiros e pecuaristas de continuar invadindo os 22 mil hectares de área protegida. O Estado está em grande parte ausente na Amazônia e, em várias regiões, o que vale é a lei do mais forte.

Há também uma guerra cultural no Pará. Em muitas partes do Brasil, a natureza ainda é considerada algo atrasado e importuno, que deve ser domado e de preferência eliminado para abrir espaço para o desenvolvimento econômico. Bolsonaro encarna esse ponto de vista por excelência, ele fala de "árvores de merda" e defende garimpeiros e madeireiros ilegais. Para ele, aqueles que defendem a floresta são baderneiros. Os recordes de desmatamento na Amazônia sob o governo Bolsonaro não são uma coincidência.

Sustento vindo da floresta

Depois dos assassinatos de José Cláudio e Maria, Santos e sua mãe, que também recebeu ameaças de morte, se mudaram para Marabá, que fica a duas horas e meia de carro da reserva. Lá Santos estuda e trabalha no instituto Zé Cláudio e Maria – uma ONG fundada por sua mãe para ajudar a manter de pé a luta por Justiça e a memória dos mártires socioambientais.

Nesta tarde, ela vai à reserva para visitar a tia, Claudecir dos Santos, que deu continuidade à tradição do extrativismo. Depois de um longo trajeto numa estrada de terra e ao longo de pastagens, ela chega à área protegida, fácil de reconhecer devido à mata fechada. Para recebê-la, Claudecir matou uma galinha que prepara num fogão à lenha numa cozinha aberta. "Estou satisfeita com a minha vida", diz a viúva de 57 anos.

Na manhã seguinte, a mulher pequena e musculosa entra na floresta com um facão e uma cesta nas costas – cerca de 30 hectares de mata pertencem ao seu quintal. Ela conta que há quatro ou cinco frutos que a ajudam a ganhar a vida. 

Em primeiro lugar, está a castanha-do-pará. Elas crescem em castanheiras e, em ouriços que parecem balas de canhão, as castanhas amadurecem envoltas cada uma em uma casca dura. A castanha-do-pará não pode ser cultivada em plantações, ela dá apenas na floresta. Essa é uma das razões para o alto preço de venda desse produto no mercado. Nutritivas, as castanhas possuem um elevado teor de proteína e gordura, além de muitos minerais.

Legenda:

Cada uma das dezenas de castanheiras na floresta produz por safra castanhas no valor de cerca de R$ 500, segundo Claudecir. Ela acrescenta que, ao longo dos anos, isso rende muito mais do que se derrubassem a árvore e vendessem sua valiosa madeira. Apesar de o corte da espécie ser proibido pela legislação brasileira, madeireiros continuam derrubando castanheiras. Eles simplesmente declararam a madeira como de outro tipo.

Igualmente importante para a renda de Claudecir é a andiroba, de cujas sementes é extraído um valioso óleo, que tem efeitos antissépticos e é usado na fabricação de sabonetes. Em sua oficina, Claudecir mostra como funciona o processo de extração do óleo. Ela se uniu com outras mulheres da reserva numa cooperativa para comercializarem juntas o óleo.

Açaí, cacau e cupuaçu também são coletados e vendidos. Já mamão, manga e limão são para consumo próprio. Além disso, Claudecir planta mandioca, feijão, cana-de-açúcar e ervilha. O quintal dela parece um paraíso autossuficiente. Mas é claro que não cresce tudo que é necessário para viver na floresta. 

Claudecir, que recebe ajuda de um irmão mais novo para cuidar da plantação, compra açúcar, sal, arroz, café e óleo na cidade. "Mas eu não gosto da cidade", diz. "A floresta me dá tudo que eu preciso. Ver como ela é viva me dá coragem. Apesar de tudo."

Ameaças de morte

Faz dois anos que a mãe de Claudecir, que vive em Marabá, recebeu uma carta na qual estava escrito com letras recortadas: "Vamos acabar com o resto da família". E essa não foi a única ameaça.

Ao anoitecer, vestindo jeans e chinelos de dedo, Claudia dos Santos atravessa um riacho do qual vem a água usada por sua tia. As cigarras já começaram com sua cantoria ensurdecedora, e longe um grupo de bugios grita. Santos senta embaixo de uma castanheira imponente, que emerge para o céu de uma clareira. A idade da poderosa árvore é estimada entre 350 e 400 anos, ela conta. Sua família a batizou com o nome de Majestade. "Eu venho aqui para encontrar minha paz. Essa clareira é minha catedral."

Como a Amazônia virou terra sem lei

Santos conta que há dois anos, na volta de uma visita à reserva com uma amiga, elas foram seguidas por uma pick-up com luz alta que chegava cada vez mais perto. "Entramos em pânico e aceleramos até que nosso carro quase capotou numa curva." A jovem acredita que um pecuarista que tem uma fazenda na divisa com a reserva esteja por trás do episódio.

O extrativismo, como o praticado por Claudecir e sua família, é uma provocação. A economia predominante na região é a pecuária, que também se espalhou pela reserva extrativista. De 400 famílias que moram no local, apenas 20 ainda praticam a silvicultura. As outras possuem gado, o que contradiz o objetivo da reserva, mas é a realidade.

"Querem lucro rápido. Pensam que só os que têm gado contam", afirma Suena Nascimento, de 28 anos, que é professora numa escola rural e presidente do coletivo de extrativistas do qual 15 mulheres fazem parte.

"Nós, mulheres, pensamos a longo prazo", afirma a professora. "Algumas famílias que começaram a criar gado já se arrependeram", diz, apontando que elas não calcularam os custos de fertilizantes para as pastagens, ração, vacinas e outros. "As primeiras a mudar de ideia são as mulheres. Os homens precisam de mais tempo. Mas o mais tardar quando a água se torna escassa e o solo esgotado, eles percebem que algo não vai bem. É preciso se aliar à natureza para sobreviver na Amazônia", ressalta (DW, 25/8/22)


O desmantelamento do Estado brasileiro - Por Philipp Lichterbeck

Legenda: Ações de madeireiros ilegais e outros grupos criminosos aumentaram na Amazônia sob Bolsonaro. Foto: Tarso Sarraf/AFP/Getty Images

 Em Atalaia do Norte, onde Bruno Pereira e Dom Philipps foram assassinados, clima entre indígenas e funcionários da Funai é de medo e abandono. Região foi praticamente entregue às máfias ambientais pelo governo Bolsonaro.

Escrevo esta coluna em Atalaia do Norte, na Amazônia. Este é o local até onde Bruno Pereira e Dom Philips jamais conseguiram chegar. No caminho até aqui, o indigenista brasileiro e o jornalista britânico foram assassinados no rio Itaquaí. Seus corpos foram queimados, esquartejados e enterrados na floresta.

Desde então, a polícia prendeu vários suspeitos. Mas os indígenas que vivem em Atalaia do Norte e estão engajados na União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) ainda vivem com medo. Quando nos encontramos, eles pediram que não tirássemos fotos e não citássemos os nomes deles. Eles não acreditam que o Estado seja capaz ou tenha a intenção de protegê-los.

Mesmo que os assassinos possam estar presos em Manaus, os indígenas sabem que a Terra Indígena do Vale do Javari continua sendo alvo de uma máfia de pescadores, caçadores e madeireiros ilegais. Garimpeiros também invadem o território.

Fomos alertados a ter muito cuidado navegando pela rota que Dom e Bruno percorreram em sua última viagem. Ela começa na base da Funai em Ituí-Itaquí, na entrada do Vale do Javari, a reserva com o maior número de povos indígenas isolados em todo o mundo. Depois de a base ter sido alvo de diversos ataques armados em 2019, quatro soldados da Força Nacional foram posicionados ali para proteger os funcionários da Funai, que não andam armados.

Escassez de recursos

Ao chegarmos à base da Funai, notamos dois barcos em um hangar. Eles tinham motores de 40 e 15 hp, e nos perguntamos como a Funai pretende fazer o monitoramento e fiscalização efetiva da Terra Indígena com essas embarcações.

O barco dos assassinos de Dom e Bruno tinha um motor de 60 hp. Eles costumavam entrar no vale através de rotas secretas para pescar ilegalmente. O Estado brasileiro está, portanto, em desvantagem em relação aos criminosos já no que diz respeito a equipamentos.

Soubemos que também há uma escassez crônica de combustível na base. Pediram que levássemos um antropólogo da Funai, que trabalha com povos isolados e acabara de passar 60 dias na selva, de volta para Atalaia em nosso barco, numa viagem de duas horas e meia. Quando passamos pelos povoados onde moravam os assassinos de Dom e Bruno, o funcionário confessou que está com muito medo.

Ele também disse que dependia dessa carona – o que nos levou a pensar no que acontece com o Estado brasileiro, que subfinancia suas agências e abandona seus funcionários. Há, no entanto, algumas exceções: sob Bolsonaro, as Forças Armadas receberam Viagra e leite condensado.

Quatro anos de desmonte

Mas, por que estou contando tudo isso? Porque um dos resultados de quatro anos de Bolsonaro é a destruição de parte do Estado brasileiro. O presidente não somente reduziu os recursos financeiros, mas também o número de funcionários e as competências de algumas agências federais, construídas durante anos.

Cargos de gerenciamento foram ocupados por militares e bolsonaristas que, com frequência, possuem pouca competência, mas muito radicalismo. Muitas vezes, o que se viu foi uma deturpação da função dos respectivos órgãos, como foi o caso no Ibama, ICMbio e na Funai. Assim, em vez de proteger o meio ambiente, passaram a proteger os destruidores do meio ambiente, como fazia o ex-ministro Ricardo Salles.

Resultado: os criminosos foram encorajados, e as máfias, fortalecidas, enquanto o funcionalismo do governo foi enfraquecido. Não é coincidência que o funcionário da Funai Maxciel Pereira tenha sido morto a tiros em plena rua em Tabatinga, durante o governo Bolsonaro.

Quando Bruno Pereira foi assassinado, o azar dos assassinos foi que Dom Philips, um correspondente internacional, estava com ele. Se não estivesse, o crime contra Bruno teria, provavelmente, ficado sem solução, assim como o de Maxciel. Essa é a opinião unânime de todos com quem conversamos na região de Atalaia do Norte.

Governo aliado de criminosos

É notável como um presidente que se coloca como dedicado à lei e a ordem se tornou um aliado de criminosos: grileiros, incendiários, madeireiros, pescadores e caçadores ilegais.

Isso pode até ser menos perceptível no resto do Brasil, mas é um desdobramento claro na Amazônia. O governo Bolsonaro, que sempre ressalta que "a Amazônia é nossa", entregou a floresta à máfia ambiental, enfraquecendo deliberadamente o Estado (Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para jornais da Alemanha,Suíça e Áustria  Ele viaja frequentemente entre Alemanha, Brasil e outros países do continente americano. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio; DW, 25/8/22)