Brasil se afasta cada vez mais de metas do Acordo de Paris
Legenda: Área de Floresta Amazônica queimada perto de Apuí, no Amazonas, em agosto de 2020
Cinco anos depois de desempenhar papel-chave na assinatura do histórico pacto global para combater as mudanças climáticas, país vê sua imagem arranhada por desmatamento recorde e alta de emissões sob Bolsonaro.
Quando o histórico Acordo de Paris foi assinado por mais de 190 países para reverter a crise climática, em 12 de dezembro de 2015, o Brasil chegava ao fim das longas semanas de reuniões com um papel de destaque. Nomeado pela presidência da Conferência do Clima sediada na capital francesa para destravar pontos essenciais das negociações, o Ministério do Meio Ambiente conseguiu o feito. O pacto alcançado foi celebrado como o maior esforço global para reduzir as emissões de gases de efeito estufa e, assim, frear as mudanças climáticas.
Cinco anos depois, com um desmatamento recorde e emissões em alta, o Brasil, isolado, vê sua imagem cada vez mais arranhada no cenário internacional e se distancia dos compromissos que assumiu em Paris.
Desde o início do governo do presidente Jair Bolsonaro, a política ambiental desandou num ritmo acelerado. A taxa oficial de desmatamento da maior floresta tropical do mundo em 2020, de 11.088 km², é 70% maior que a média da década anterior (6.500 km² por ano). Junto com as queimadas, essa fonte foi responsável por 72% das emissões do Brasil em 2019, segundo dados do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG).
Sob Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, recursos internacionais que apoiavam projetos para manter a floresta em pé, por meio do Fundo Amazônia, foram paralisados. O aumento das queimadas, das invasões de terras indígenas e áreas protegidas, além da intenção flagrada em vídeo de aproveitar a pandemia para flexibilizar normas e "passar a boiada", completam o cenário.
"Hoje a gente vê um Brasil que perdeu totalmente sua liderança internacional, que vai a qualquer reunião com o chapéu na mão para pegar dinheiro – que não virá", lamenta Thelma Krug, pesquisadora aposentada do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e ex-diretora de Políticas de Combate ao Desmatamento do Ministério do Meio Ambiente.
Com o desmonte generalizado e falas do governo que estimulam crimes ambientais, segundo a análise de Krug, o país vive um desastre. "Nós estamos totalmente na contramão da história, na contramão de olhar para essa questão climática e ambiental de forma séria, responsável e crível", critica.
Longe de metas nacionais e internacionais
Essa desorganização interna faz com que o país se afaste das metas que prometeu no Acordo de Paris e o torna incapaz de cumprir suas próprias leis, como a Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC).
Regulamentada em 2010, essa política fixou que, em 2020, o corte do desmatamento da Amazônia deveria ser de 80% em relação à média verificada entre 1996 e 2005. Na prática, a destruição deveria atingir uma área máxima de 3.925 km².
"Os números do desmatamento revelam que o Brasil não vai cumprir a Política Nacional sobre Mudança do Clima já que, atualmente, a taxa está três vezes acima da meta de 2020", ressalta Izabella Teixeira, que chefiou o ministério do Meio Ambiente de 2010 a 2016 e liderou a comitiva brasileira na conferência de Paris em 2015.
Isso faz com que a desconfiança aumente, analisa Carlos Rittl, pesquisador visitante do Instituto de Estudo Avançados em Sustentabilidade de Potsdam, na Alemanha. "Se aquilo que é uma obrigação legal dentro do arcabouço nacional, como é a PNMC, não será cumprido, quem pode confiar que o Brasil vai cumprir uma meta internacional?", questiona.
Os compromissos do Acordo de Paris
No Acordo de Paris, o Brasil se comprometeu a chegar a 2025 liberando 37% a menos de gases estufa na atmosfera em relação aos índices de 2005. Para 2030, o plano seria de redução de 43%. Além disso, o país afirmou que zeraria o desmatamento ilegal até 2030, compensaria as emissões de gases vindos da supressão legal da vegetação, e restauraria e reflorestaria 12 milhões de hectares de florestas até o fim da atual década.
Essas obrigações estão no documento chamado de Contribuição Nacionalmente Determinada, ou NDC, na sigla em inglês. Ele é a base para que o objetivo maior do pacto mundial seja alcançado: limitar o aquecimento do planeta a no máximo 2 ºC em relação ao nível pré-industrial até 2100. No entanto, o acordo diz que "vai perseguir esforços para limitar o aumento a 1,5 ºC", e reconhece que, assim, os riscos e impactos das mudanças climáticas seriam reduzidos.
Para que essa conta feche, as emissões de gases do efeito estufa, que aquecem o planeta e aceleram as mudanças climáticas, teriam que ser reduzidas drasticamente. Os 196 países que assinaram o acordo estipularam em suas NDCs metas internas de corte – mas elas são insuficientes para segurar a subida do termômetro.
Por isso é preciso aumentar a ambição, rever as promessas e submeter novos números ao órgão da ONU que gerencia o Acordo de Paris, a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima (UNFCC).
Postura "vergonhosa"
Mas não foi o que o Brasil fez. Numa apresentação feita na última quarta-feira (09/12), considerada "vergonhosa" por especialistas, Salles manteve os números apresentados na NDC de 2015, do governo Dilma Rousseff. O ministrou anunciou ainda a intenção de atingir a neutralidade em carbono em 2060 – dez anos mais tarde do que o prometido pela maioria dos países.
Essa última meta, no entanto, poderia ser antecipada caso nações ricas doassem ao Brasil 10 bilhões de dólares por ano já a partir de 2021, argumentou o ministro. Essa condição causou embaraço a quem participou das negociações de Paris.
"O Brasil sempre mostrou primeiro a redução das emissões pelo desmatamento para depois receber recursos de fora, principalmente através do Fundo Amazônia", critica Thelma Krug. "É preciso, antes disso, de pedir dinheiro, implementar as políticas necessárias que mostrem, primeiro para a gente e depois para o mundo, que o Brasil é um país sério."
Dias antes do anúncio de Salles, o Observatório do Clima, rede de 56 organizações da sociedade civil, propôs que o país submetesse uma nova NDC com corte de emissões líquidas de 81% até 2030 em relação aos níveis de 2005. Isso significaria uma carga máxima de 400 milhões de toneladas de gases emitidas por ano – a taxa atual é de cerca de 1,6 bilhão de toneladas.
Tempo se esgotando
Pesquisadores do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) alertam há anos que o tempo está se esgotando para conter as mudanças climáticas. O aumento registrado da temperatura média global em 1 ºC em comparação ao período antes da Revolução Industrial já provoca impactos perceptíveis em todo mundo, como secas mais severas e tempestades mais intensas.
"A questão está realmente em limitar as emissões. Não caiu a ficha dos países ainda. Se tivesse caído, os países iriam ver que os impactos da mudança do clima, do aquecimento, são péssimos para a economia, para a saúde, a agricultura, ecossistemas, e o dinheiro que será gasto com tudo isso", afirma Krug.
Com a prometida volta dos Estados Unidos ao Acordo de Paris após a eleição de Joe Biden, Rittl espera que o novo arranjo geopolítico traga alguma notícia boa vinda do Brasil. "O governo Bolsonaro está jogando fora todas as oportunidades. Acha que pode desmatar, desmatar e desmatar para produzir porque o mundo vai comprar. Mas há sinais de que isso não vai funcionar por muito tempo", comenta sobre acordos comerciais que consideram a sustentabilidade.
Para a ex-ministra Izabella Teixeira, o Brasil seria mais competitivo e inclusivo com uma economia de baixo carbono. "Eu torço para que o país dê certo porque o mundo precisa das soluções do Brasil. Na agricultura, por exemplo, o país pode influenciar tremendamente novos caminhos, com uma economia que mantém as florestes de pé, que consegue avançar com matriz energética renovável. O Brasil tem soluções, essa é a diferença. Mas as decisões precisam ser tomadas o mais rápido possível", pontua.
Procurados pela DW Brasil, o Ministério do Meio Ambiente e o Itamaraty não se manifestaram até o fechamento desta reportagem (DW, 12/12/20)
Assinado há cinco anos, Acordo de Paris resiste a líderes que negam mudanças climáticas
Legenda: No quinto aniversário do Acordo de Paris, pessoas de ONGs ambientais se reúnem na cidade para escrever "SOS" perto da torre Eiffel - AFP
Tratado deu sinal verde para economia de baixo carbono e inspira tendência econômica.
Celebrado em uma noite de sábado, no dia 12 de dezembro de 2015, o Acordo de Paris já nasceu como um sucesso diplomático, com recorde de assinaturas dos países no mesmo dia e entrada em vigor menos de um ano depois.
Com metas de longo prazo para conter as emissões de gases-estufa, o tratado sinaliza a transição de investimentos para uma economia menos dependente de emissões de carbono e outros causadores do aquecimento global.
No entanto, de lá para cá, o otimismo diante do maior esforço global pelo clima foi transformado em suspense por conta da ascensão de líderes de direita ligados a movimentos que negam as mudanças climáticas, especialmente em países-chave para a agenda climática: os Estados Unidos, maior emissor histórico de gases-estufa, e o Brasil, dono da maior floresta tropical do mundo.
Marcados pelas eleições dos presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro, os cinco anos do Acordo de Paris têm como marca a resiliência política do acordo, reafirmado nesse período por lideranças na Europa e na China. Também segue sendo incorporado a acordos comerciais, como é o caso do acordo entre o Mercosul e a União Europeia, cuja votação pelo Parlamento Europeu depende justamente de esclarecimentos sobre o cumprimento ao acordo climático, que deve implicar em redução do desmatamento na Amazônia.
A estratégia do Acordo de Paris é baseada em metas anunciadas livremente por cada país —as contribuições nacionais determinadas, ou NDCs, na sigla em inglês —que foram submetidas em 2015 e devem ser atualizadas com metas mais ambiciosas a cada cinco anos.
Até o fim de dezembro, os países devem submeter suas novas metas climáticas para o Acordo de Paris. Os líderes dos países com metas mais ambiciosas devem discursar neste sábado (12) em evento organizado pela ONU em parceria com o Reino Unido, que sedia a próxima conferência do clima, em 2021. Na expectativa de discursar, o governo brasileiro apresentou sua proposta na última terça (8), mas não foi aceito pela organização do evento.
Com uma mudança na linha de base de comparação, a nova meta brasileira dá margem para aumento das emissões. a única proibição do acordo sobre a atualização das metas.
“Estamos dizendo aos países da América do Sul e da África: não vamos continuar comprando os mesmos produtos que consumimos no passado. Há uma mudança de padrão”, disse à Folha Yvon Slingenberg, diretora de ação climática da Comissão Europeia.
“Sem comentar sobre a política ambiental brasileira, vemos com preocupação que o setor florestal, que é chave para a redução das emissões no Brasil, não aparece na nova meta [do Acordo de Paris, divulgada nesta semana pelo governo Bolsonaro]”, acrescentou, criticando também o fato de o prazo brasileiro para atingir a neutralidade de carbono estar condicionado à implementação de um mercado de carbono. O Brasil tem barrado esse item nas negociações da ONU. “Se você coloca sua transição condicionada a um fator externo, não vai ajudar o próprio país a sinalizar para onde a economia e a sociedade precisa ir”, afirma Slingenberg.
Slingenberg também aponta que o investimento privado será fundamental — inclusive para a arrecadação de US$ 100 bilhões anuais prometidos pelos países desenvolvidos a partir deste ano — e diz que a União Europeia deve lançar no próximo março uma estratégia financeira para obrigar empresas a expor seus riscos ligados a dependência de fontes de energia fóssil e direcionar o mundo financeiro para investimentos verdes.
A sinalização econômica dada pelo Acordo de Paris já ganhou efeitos visíveis nesses cinco anos, segundo relatório publicado nesta semana pela consultoria Systemiq, voltada para negócios sustentáveis.
“Essa direção [dada pelo Acordo de Paris] aumentou a confiança de líderes para fornecer sinais consistentes nas políticas. Por sua vez, isso criou condições para empresas investirem e inovarem, e para soluções ‘carbono zero’ ganharem escala, de veículos e elétricos a proteínas alternativas [à carne bovina], até combustível sustentável para a aviação”, diz o relatório.
A pesquisa mostra que, de 2015 para cá, as soluções de baixo carbono no setor energético deixaram de ser um nicho e se tornaram um mercado de massa, enquanto soluções que ainda estavam em desenvolvimento em setores de transporte, agricultura, manejo de solos e aviação ganharam mercado de nicho. O relatório projeta que esses setores avancem para um mercado massivo até 2030.
Essa também é a aposta de empresas do setor de energias renováveis, especialmente de solar e eólica. Em seu relatório anual, a Statkraft, uma das maiores empresas de energia renovável na Europa, afirma que o segmento conseguiu se manter em crescimento mesmo durante a pandemia. A empresa também investe no Brasil e projeta que “20% da eletrificação brasileira seja proveniente de fontes eólica e solar até 2030”.
O país, no entanto, está aquém da meta de expansão das energias renováveis e perdeu cinco posições no ranking de desempenho climático produzido pela organização Germanwatch, que classificou a política climática brasileira no nível mais baixo.
Apesar de ter estabilizado o consumo de energia, o Brasil tem aumentado suas emissões, mesmo durante a pandemia, por conta das altas seguidas no desmatamento. No relatório anual Emissions Gap Report, o Brasil aparece junto à Indonésia e ao Congo entre os maiores emissores ligados à derrubada de florestas.
Por outro lado, o país também figura, junto a China, Rússia e Estados Unidos, entre os maiores ‘tanques’ de absorção de carbono, através da gestão de unidades de conservação para que florestas permaneçam de pé.
Globalmente, as emissões de gases-estufa subiram de 53 bilhões de toneladas em 2015 para 55 bilhões em 2020. No entanto, o gás carbônico, que responde pela maior parte das emissões, desacelerou as emissões nos últimos anos e sofreu uma queda recorde na quarentena para conter a pandemia de Covid-19. O principal impacto se deve à redução das emissões do setor de transportes, responsável por quase 20% das emissões globais.
Com a pandemia, a projeção é que o ano de 2020 termine com uma redução de 7% nas emissões de gás carbônico. Se a taxa for repetida anualmente nos próximos dez anos, o mundo conseguirá alcançar a meta do Acordo de Paris de conter o aumento da temperatura global em até 1,5ºC. A maior aposta para essa trajetória está na adoção de critérios de sustentabilidade para os planos de recuperação econômica pós-pandemia.
O que torna a possibilidade de uma retomada econômica verde ainda mais otimista é um novo estudo publicado nessa semana pela revista científica Nature Climate Change. Pela primeira vez mostrou-se que as reduções de emissões de gases-estufa seguindo o Acordo de Paris podem ter benefícios climáticos já nos próximos 20 anos, desacelerando o aquecimento global ainda antes de 2050 (Folha de S.Paulo, 13/12/20)