Catástrofe global de fome está sendo alimentada pela guerra na Ucrânia
PUTIN Foto Blog Tecmundo
Por Chloe Sorvino
Conflito reacende as incertezas da segurança alimentar no mundo, enquanto grandes produtores buscam alternativas, como EUA e Brasil .
Dezenas de milhões de pessoas – da Europa até a Ásia, África e Oriente Médio –, devem passar fome esse ano, por conta de uma sinistra combinação de fatores que pioram como resultado da guerra na Ucrânia, provocada pelo presidente russo Vladimir Putin (Foto).
O conflito, que envolve dois países que produzem cerca de ⅓ da produção mundial de trigo, ajudou a elevar o preço do grão em 21% em apenas 10 dias, que se encerraram no dia 3/3. Condições climáticas extremas, como a seca persistente da América do Norte, altos custos de combustíveis, preços de fertilizantes chegando até o teto e a necessidade de alimentar um número crescente de refugiados realocados pela guerra e mudanças climáticas, irão contribuir para a ameaça do aumento da fome em 2022.
“De muitas maneiras, a situação beira a catástrofe e, sem uma assistência imediata e substancial, irá pior”, afirma Eric Muñoz, consultor sênior de políticas para agricultura na Oxfam (Comitê de Oxford para Alívio da Fome), a entidade humanitária sediada em Nairobi, no Quênia. “Não há maior alerta do que o momento atual, com o preço dos alimentos nos céus e o rápido crescimento da fome, para uma conversa séria sobre repensar nossos sistemas globais de alimentos”.
Soluções a curto prazo são difíceis de encontrar. Fazendeiros americanos, afetados por aquilo que alguns observadores estão chamando de “o tempo mais seco em 1.200 anos”, não podem ser considerados a chave para compensar o déficit. A Nutrien, a maior fabricante global de fertilizantes, tem planos de escalar sua produção em 20%, mas os preços estão tão altos que a maioria dos produtores ainda não será capaz de pagar pelo insumo. Uma maneira mais permanente de lidar com a fome crônica mundial seria a partir da criação de outras opções em mais lugares para cultivar e acessar alimentos. A agricultura orgânica mostra lampejos de crescimento, mas ainda é responsável por menos de 1% dos hectares agrícolas nos EUA por falta de tecnologias escaláveis.
Fora isso, ainda há o problema da logística de levar alimentos antes que as pessoas morram de fome. Antes da guerra na Ucrânia, 26 milhões de refugiados, o maior nível da história, contavam com uma rede de ajuda e organizações governamentais por alimento. O ataque da Rússia na Ucrânia dispersou ou tornou refugiados mais de 10 milhões de pessoas. O Programa Mundial de Alimentos, braço de assistência da ONU (Organização das Nações Unidas), prevê que seus custos aumentem em US$ 71 milhões em um mês, apenas como resultado do conflito.
O Oriente Médio e a África do Norte são particularmente vulneráveis a altos preços em alimentos, segundo o Programa Mundial de Alimentos. O Líbano importa cerca de 40% de seu trigo da Ucrânia, conforme a organização. Para a Tunísia, a porcentagem é de 42% e para o Iêmen 22%. Globalmente, os preços de alimentos já estão batendo recordes, e compradores que precisam explorar mercados para substituir o trigo ucraniano estão dispostos a pagar ainda mais, afirma a organização. A Rússia já reduziu as exportações de trigo e milho, e o ministro da agricultura ucraniano disse na terça-feira (22) que sua safra de primavera cairia à metade do que o país esperava antes da invasão. A Ucrânia já suspendeu suas exportações de carnes, animais vivos, sal, açúcar, trigo sarraceno, aveia, milho e centeio.
Em 2010, preços crescentes no pão contribuíram para as manifestações políticas da Primavera Árabe, que afetou cerca de três dúzias de países e forçaram mudanças de regime no Egito e na Líbia. Protestos contra o alto preço de alimentos também contribuíram para o aumento da violência praticada pelo grupo extremista Estado Islâmico. O atual suprimento de comida no mundo não é tão ruim quanto em 2010 — quando os suprimentos totais eram ainda menores —, mas os estoques de grãos estão agora em condição crítica.
Fazendeiros norte-americanos estão paralisados quando o assunto é preencher o vácuo na produção de alimentos. Primeiro, há o clima ruim histórico: 35 estados, ou 61% de todos os hectares dos 48 estados em território contínuo, passam por uma estiagem, segundo cálculos do governo até a semana passada. Condições extremas ou severas de secura persistem desde a costa pacífica, no oeste, até Louisiana e Arkansas no leste dos EUA.
Também há a questão da disponibilidade de terra. De imediato, agricultores em países como EUA e Brasil já estão produzindo o máximo que podem. A agricultura exige planejamento de longo prazo muito antes do plantio, e companhias e organizações compram alimento com meses, senão anos, de antecedência. Contratos diretos com fornecedores dão aos produtores ainda menos margem de manobra sobre quais culturas cultivar. É por isso que acabar com a escassez global de alimentos está longe de ser tão simples quanto os agricultores americanos ou brasileiros começarem a plantar mais trigo ou milho.
O alto custo de fertilizantes também trava a agricultura global. Fertilizantes à base de nitrogênio tiveram seus preços quadruplicados, enquanto os valores de fosfato e potássio triplicaram desde 2020. A Nutrien afirmou que está expandindo sua mineração no sul do Canadá para potassa, um fonte essencial de potássio, para compensar o que poderia ser um déficit global escancarado devido a sanções à Rússia, um grande exportador.
Proponentes da agricultura industrial dizem que fertilizantes químicos são necessários para cultivos de grandes rendimentos e a alimentação da crescente população global. Porém, o uso excessivo de fertilizantes tem sido uma das principais causas da poluição em vias pluviais e zonas mortas, como a enorme área no Golfo do México, assim como a degradação do solo e erosão. Todos estes são fatores que irão desafiar o acesso à comida no futuro, e defensores da agricultura sustentável dizem que agora é a hora de fazer a transição para sistemas mais resilientes.
“Todos os sinais de preços mostram que o mundo está nos indicando o caminho da mudança”, disse Sanjeev Krishnan, o diretor de investimentos da empresa de risco S2G, que é apoiada pelo herdeiro do Walmart, Lukas Walton, e investe em alimentos e agricultura desde 2014. “Isso é cíclico ou estrutural? Na minha opinião, é estrutural.”
Assim que os preços dos fertilizantes começaram a subir, o Departamento de Agricultura dos EUA anunciou que criaria um fundo de US$ 250 milhões para investir em fertilizantes alternativos e fabricados nos EUA. O governo do Brasil, que tem importado muito fertilizante da Rússia, também está investindo em alternativas. Enquanto isso, no início deste mês, o presidente francês Emmanuel Macron sinalizou apoio a mais investimentos em infraestrutura alimentar.
“A Europa, e também a África, estarão profundamente desestabilizadas em relação aos alimentos por causa do que não pode ser plantado agora na Ucrânia”, disse Macron em 11 de março. “Teremos que nos preparar para isso e reavaliar nossas estratégias de produção para defender nossa soberania alimentar, mas também poder definir uma estratégia em relação à África”.
A segurança alimentar deve ter a mesma prioridade que a segurança energética, disse Graham Gordon, chefe de política da Agência Católica para o Desenvolvimento no Exterior, no Reino Unido, a segunda maior rede humanitária sem fins lucrativos do mundo depois da Cruz Vermelha.
“Tivemos dois anos em que as cadeias de suprimentos não funcionaram direito”, disse Gordon. “Como podemos repensar a alimentação e como podemos pressionar por mais soberania alimentar?” (Forbes, 24/3/22)