06/11/2020

Gado pode regenerar pastagens degradadas, defendem especialistas

Gado pode regenerar pastagens degradadas, defendem especialistas

 

Por Ana Maria Amaral

Legenda: Gado na Fazenda Triqueda (Foto: Divulgação)

A recuperação de pastagens degradadas é um dos desafios centrais para a conciliação do setor da agropecuária com a conservação ambiental e o combate às mudanças climáticas.

Para três especialistas do agro, a própria atividade pecuária pode ser a ferramenta para a recuperação das pastagens degradadas. A chave seria um método baseado no comportamento da natureza, replicando os movimentos migratórios de grandes manadas de herbívoros.

Em artigo exclusivo para o blog Ambiência, eles explicam como conciliam produtividade com regeneração ambiental e defendem que o método pode mudar o paradigma da pecuária brasileira.

O texto é assinado pelo engenheiro agrônomo Luís Fernando Guedes Pinto, do Instituto Imaflora, e também por dois pecuaristas que implementam o método em suas fazendas: Leonardo Resende, sócio da Fazenda Triqueda, doutor em Geografia e Meio Ambiente e cofundador do projeto Pecuária Neutra e Regenerativa; e Filippo Leta, especialista em manejo regenerativo e fundador da marca Ah Pashto.

Os autores criticam as estratégias apoiadas atualmente pelo governo federal para recuperação de pastagens. “Nenhuma delas foca na origem do problema, que é o manejo ineficiente das pastagens; ou seja, elas não impedem que a degradação se repita de forma cíclica”.

Leia a seguir a íntegra do artigo.

Como revitalizar as pastagens degradadas do Brasil*

Há uma boa convergência de que o modelo de produção de alimentos adotado demanda mais recursos naturais do que a biocapacidade do planeta, agravando o aquecimento global e os extremos climáticos, isso sem se referir à perda de cobertura natural do solo, da biodiversidade, entre outros.

De acordo com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU), a Agenda Global tem como uma das principais diretrizes a redução da pegada ecológica do agronegócio, sendo parte desse desafio associado à redução global da degradação de terras férteis, estimada em 1% ao ano durante as últimas décadas.

No que diz respeito à pecuária brasileira, o principal esforço está concentrado em reduzir o percentual de pastagem diagnosticada como degradada de 52,43%, (ou 90,85 milhões de hectares) e elevar a baixa produtividade média, hoje de 0,7 cabeças/ha.

Vale destacar que o processo de degradação se caracteriza pela perda de matéria orgânica do solo, liberando o carbono estocado para a atmosfera, intensificando o passivo ambiental do 2º maior emissor de gases de efeito estufa do setor.

Legenda: Mapa da distribuição das pastagens degradadas no Brasil (Imagem: LAPIG)

Nesse contexto, algumas estratégias podem ser utilizadas para reverter esse cenário, sendo a reforma de pastagens degradadas e a implementação da Integração Lavoura Pecuária Floresta (ILPF) as mais utilizadas no Brasil.

Ambas são incentivadas pelo Governo Federal através do Plano da Agricultura de Baixo Carbono (ABC), mas, paradoxalmente, nenhuma delas foca na origem do problema, que é o manejo ineficiente das pastagens; ou seja, elas não impedem que a degradação se repita de forma cíclica.

Para isso, também será necessário que haja uma evolução de boas práticas relacionadas ao manejo adequado das pastagens, com o potencial de mudar o paradigma da pecuária a pasto brasileira para um sistema de produção efetivamente agroecológico e sustentável.

Nesse contexto, a Pecuária Regenerativa vem sendo difundida no mundo apoiada por vários centros de pesquisa, como é o caso da Arizona State University, nos Estados Unidos, e da University of Alberta, no Canadá, assim como os Hubs do Instituto Savory, no Brasil, Argentina, Chile, África, entre outros.

A Pecuária Regenerativa busca mimetizar (ou imitar) o comportamento da natureza, utilizando o gado como ferramenta para revitalizar as pastagens, replicando a história de sucesso do período anterior à domesticação dos animais, quando as grandes manadas de herbívoros desempenhavam um papel importante no equilíbrio dos ecossistemas.

Eles se mantinham sempre agregados em grandes rebanhos e em movimento constante para se protegerem contra os predadores, podando os campos nativos em movimentos migratórios, contribuindo de maneira fundamental para a ciclagem de nutrientes e a vitalidade da vegetação.

Somado a isso, o ajuste da taxa de lotação e da pressão dos animais sobre a pastagem permite que a biomassa seja dividida em três partes similares: a primeira para nutrição dos animais, a segunda depositada no solo como matéria orgânica residual, e a terceira remanescente como base da planta para que a pastagem alcance uma performance de alto rendimento, permitindo maior vitalidade para todo o sistema.

A partir de um diagnóstico holístico, um plano de pastoreio racional é elaborado, respeitando as estações do ano e as fases da pastagem (crescimento e estagnação) e o contexto de cada piquete (ou pasto) ou, nos termos regenerativos, de cada microecossistema produtivo.

Caso a leitura desse microecossistema produtivo seja feita de forma sistemática e assertiva, as pastagens tropicais têm o potencial médio de seis ciclos de crescimento durante os meses mais quentes e úmidos (fase crescimento) e de três ciclos durante os meses mais frios e secos (fase da estagnação).

A cada ciclo de crescimento bem manejado, mais matéria orgânica é depositada no solo, incrementando o estoque de carbono em aproximadamente 1,4 toneladas de CO2 equivalente por hectare a cada ano.

Através do aumento do processo de fotossíntese e da matéria orgânica, os cinco pilares naturais do sistema produtivo são beneficiados, a saber:

1) ciclo da água: a matéria orgânica adicional diminui a velocidade de escoamento superficial da água da chuva, assim como a temperatura do solo e o processo de evapotranspiração, aumentando a disponibilidade hídrica, potencializando a taxa de infiltração e a recarga do lençol freático;

2) ciclo do carbono: a otimização dos ciclos de crescimento da pastagem e incremento de matéria orgânica representam um sequestro de carbono adicional, capaz de mitigar as emissões da pecuária;

3) balanço de energia: o manejo mais eficiente privilegia a conservação da energia por meio de processos sintrópicos (de forma antagônica à pecuária tradicional e entrópica);

4) dinâmica de nutrientes: mais fotossíntese significa mais carboidratos, privilegiando tanto a nutrição dos animais quanto toda a biodiversidade local;

5) dinâmica da macro e microbiologia: com mais água e carboidratos disponíveis, toda a cadeia trófica se beneficia, desde fungos, ácaros, micorrizas, fixadores de nitrogênio, nematoides, pequenos insetos, roedores, aves, até os predadores do topo de cadeia.

A quebra de paradigma representada por esse modelo produtivo inteligente do ponto de vista ambiental e climático sinaliza a possibilidade de que as fontes de proteína animal (ex: carne, couro, leite e derivados) possam ter sua origem diferenciada, passando esses produtos a não serem meramente denominados como commodities, que valem o quanto pesam, mas, sim, de acordo com o valor intrínseco referente ao seu indicador de sustentabilidade.

No que diz respeito à figura do produtor rural, experiências internacionais sinalizam que esse modelo o aproximou de um consumidor final, com perfil moderno e ávido por produtos de menor impacto ambiental, encurtando os elos da cadeia produtiva e aumentando sua lucratividade.

Tais práticas regenerativas são não só muito mais complexas, como também proporcionam muito mais benefícios, fortalecendo a busca de uma fonte de proteína animal segura, capaz de mitigar as mudanças climáticas, de apoiar a sociedade no desafio da segurança alimentar, bem como restaurar áreas degradadas.

O Brasil já domina as tecnologias da pecuária regenerativa. A Food Tank, instituição Norte Americana dedicada à construção de uma comunidade global sustentável, divulgou uma lista com os “28 projetos mais inovadores de pecuária no mundo e que estão moldando o futuro da proteína de origem animal”.

Dentre esses, duas iniciativas brasileiras foram selecionadas, e ambas fazem parte do Projeto Pecuária Neutra e Regenerativa: a fazenda Triqueda e a Ecofarms, sendo esta última também detentora do selo para pecuária da Rainforest Alliance e auditada pelo Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) nas dimensões social, econômica e ambiental.

O próximo passo é construir políticas públicas e incentivos de mercado que multipliquem esses exemplos e alavanquem, em grande escala, a pecuária sustentável brasileira.

*Por Leonardo de Oliveira Resende, da Fazenda Triqueda, doutor em Geografia e Meio Ambiente e co-fundador do projeto Pecuária Neutra e Regenerativa; Luís Fernando Guedes Pinto, pesquisador do Imaflora, engenheiro agrônomo, doutor em Agronomia e membro da Rede Folha de Empreendedores Sociais; e Filippo Fernando Bouzon Leta, especialista em manejo holístico e regenerativo, fundador da marca Ah Pashto e membro do Savory Institute no Brasil (Folha de S.Paulo, 6/11/20)