Lula sofre golpe, sem armas, para não cumprir seu programa, diz Rui Falcão
LULA-Foto Paulo Pinto - Agência PT
Por Mônica Bergamo
Ex-presidente do PT diz que arcabouço é camisa de força imposta pelo capital.
Um dos coordenadores da campanha do presidente Lula, o ex-presidente do PT Rui Falcão afirma que o novo teto de gastos "nos meteu numa camisa de força, uma espécie de corda no próprio pescoço". Segundo ele, é urgente darmos outro sentido à política econômica conduzida pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad.
Nesta entrevista, realizada no fim do ano passado, Rui afirma ainda que o programa de governo do presidente Lula vem sendo adulterado por pressão do capital. Para ele, "o pior dos golpes".
VOCAÇÃO DO PT
O senhor foi coordenador da campanha de Lula em 2022. O presidente cumpriu nestes dois anos o programa de governo e as promessas de campanha?
Quero deixar claro o meu total apoio ao presidente Lula e ao governo por ele liderado. Mas acho que nós estamos sofrendo, nesse momento, uma espécie de duplo sequestro. O Brasil, desde a proclamação da República, tem uma tradição de golpes sucessivos, como o de 1964, o impeachment da [ex-presidente] Dilma Rousseff e a prisão do Lula.
Depois da eleição de 2022, houve o 12 de dezembro [em que bolsonaristas depredaram e incendiaram prédios de Brasília no dia da diplomação de Lula como presidente] e o 8/1. E, finalmente, o tal Punhal Verde e Amarelo [plano de golpe investigado pela Polícia Federal] em que se pretendia matar o presidente, o vice [Geraldo Alckmin] e o ministro [do Supremo Tribunal Federal] Alexandre de Moraes.
Esse golpe continuado não cessou. E hoje temos o golpe que quer nos fazer cumprir um programa de governo que não é o nosso.
É o pior de todos os golpes, porque não requer arma, não requer força militar, não requer medidas jurídicas.
É um duplo sequestro, do parlamento e do grande capital financeiro. Não podemos entregar nossa identidade e nosso projeto, mas sim fortalecê-los. Já aprendemos no passado que só a governabilidade institucional não é suficiente para lutar contra isso. Precisamos de força social mobilizada. O presidente Lula é o único líder possível neste processo de informação, educação e mobilização para pressionar o Congresso em defesa desse projeto.
Em uma confraternização no Palácio da Alvorada, Lula agradeceu ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e aos líderes pela aprovação do ajuste fiscal, se comparou a um pai trabalhador que nega R$ 5 a um filho porque tem outras contas a pagar e disse que aprendeu com o presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, a não brigar com o mercado. Tudo isso é condizente com o que o senhor defende?
Não sou avaliador dos pronunciamentos do presidente Lula. Estranho seria se o presidente falasse mal deles em uma celebração.
Não gosto de personificar. Estou falando do conjunto do governo.
Primeiro: acho um equívoco ministros e outras autoridades compararem as contas nacionais à economia doméstica. Segundo: uma diferença de R$ 10 de salário mínimo [cujo reajuste agora está limitado ao teto do arcabouço fiscal] parece muito pouco para nós, da classe média. Com esse valor você paga um café expresso em um restaurante. Mas, para quem está na faixa [de rendimentos] de dois salários mínimos, são dois litros de leite. O que significa que você vai bater na porta de cada um e falar "me dê R$ 130, no ano, para ajudar a pagar a dívida [pública]".
Como avalia a interlocução com os movimentos sociais?
O diálogo não deve ser feito só pelo governo, mas também pelo PT, que precisa se reconectar com as classes trabalhadoras. A presidenta [da legenda] Gleisi [Hoffmann] está fazendo um mandato combativo, altivo, trazendo os movimentos sociais para participarem da disputa do programa [do governo Lula], que está sendo adulterado pela pressão do grande capital.
Lula está adulterando o programa de governo?
O programa está sendo reduzido em sua pretensão. O PT precisa recuperar sua vocação histórica e apresentar um projeto imediatamente. Nosso projeto não pode ser só reeleger o Lula em 2026. Ele deve ser um projeto civilizatório, anticapitalista, com as devidas atualizações de experiências anteriores. Isso é essencial para que a gente possa ser realmente antissistema, apontando um rumo que se contraponha ao próprio sistema e à extrema-direita. A extrema-direita está fazendo uma disputa política permanente. Ao contrário da esquerda e do nosso governo.
“É um duplo sequestro, do parlamento e do grande capital financeiro. Não podemos entregar nossa identidade e nosso projeto, mas sim fortalecê-los. Já aprendemos no passado que só a governabilidade institucional não é suficiente para lutar contra isso. Precisamos de força social mobilizada” diz Rui Falcão, ex-presidente do PT.
DÓLAR
Lula ensaiou fazer esse confronto, e o dólar disparou, com o risco de a inflação explodir no bolso dos mais pobres. Sendo realista: há força política para fazer essa disputa?
Todos dizem que [o pacote de ajuste fiscal] seria algo muito pior, e que o presidente Lula conteve um pouco essa rendição ao mercado. Em vez de estar tão fixado no mercado, a gente deveria estar mais preocupado com o supermercado.
Mas o dólar passou dos R$ 6,40.
Sim, mas tem especulação. Aliás, sempre achei que tem um movimento especulativo claro, demonstrado. Mas aí o Galípolo desmente o Haddad dizendo que não há movimento especulativo. Isso desnorteia, confunde a nossa base social e eleitoral. É por isso que, com tantas realizações, a popularidade do presidente Lula continua estável. Era para estar bem elevada porque, mesmo comparando com o governo Bolsonaro —o que seria baixar muito o sarrafo–, nós já fizemos muitas coisas mais. Retomamos projetos importantíssimos. Reduzimos o desemprego, reduzimos a fome e a miséria. Entretanto, qual é a nossa marca? Precisamos de marcas.
TROCA NOS MINISTÉRIOS
Acha que a troca do ministro Paulo Pimenta por Sidônio Palmeira na Comunicação pode melhorar isso?
A chegada do Sidônio é importante, pois pode ajudar o governo a ter uma comunicação mais integrada, menos fragmentada e mais politizada. Ele tem talento, criatividade, postura democrática e corajosa. Trabalhei com ele na campanha de 2022 e, mais que um 'marqueteiro', é um quadro político de muito valor. Mas o problema não é pessoal. Parece a história do time de futebol. Quando o conjunto não joga bem, o técnico vai embora. Acho que Pimenta foi injustiçado.
FALHAS DE COMUNICAÇÃO
O técnico é o Lula, no caso.
O problema é a comunicação do conjunto. Nós tivemos [como marcas], no governo Getúlio Vargas, a industrialização do país. Juscelino [Kubitschek], 50 anos em cinco. O governo militar, Brasil grande potência. O João Goulart, reformas de base.
O Fernando Henrique [Cardoso], o fim da inflação com o plano real. O primeiro governo Lula, tirar o Brasil da fome. O governo Dilma, transformar o Brasil num país de classe média. O [Michel] Temer, ponte para o futuro —não importa o resultado disso, mas tinha um projeto.
Poderíamos estar conectando mais [com a vida real da população]. Por exemplo, o [projeto de lei que altera a escala de trabalho] 6x1. Por que o nosso governo não abraçou essa proposta?
Os níveis de abstenção nas eleições foram estratosféricos. A população está ficando descrente da política porque não se sente influenciando em nada.
Por que não convidar o povo a influir sobre o orçamento, com inteligência artificial, com a internet? Com referendos, plebiscitos, iniciativa popular legislativa, como prevê a Constituição? São coisas que o governo poderia abraçar, que ajudariam também na sua governabilidade, para não depender só dos acordos parlamentares, do toma lá dá cá, dos ministros e das emendas.
E, por último, o governo deveria acelerar a segunda fase da reforma tributária. O Haddad ia mandar para o Congresso a proposta de isenção de IR até R$ 5.000. Até hoje ela não chegou [no parlamento].
São medidas que ajudariam muito a romper esse cerco e também a mudar a correlação de forças. Quando o pessoal me fala que não dá para fazer as coisas por causa da correlação de forças, eu falo que lá na Amazon tem um estoque grande de correlação.
Se não dá para mudar a correlação, vamos embora para casa. Vamos entregar o governo para eles, porque o governo do Lula era para mudar estruturalmente [o país]. E ele está tentando fazer isso. Precisa de mais apoio, inclusive de um apoio crítico. Porque, como diz o apóstolo Lucas —e eu sou discípulo do Lula—, se os discípulos não falam, até as pedras clamarão.
TETO DE GASTOS
Acha que o seu voto contrário ao ajuste surpreendeu o Lula?
Eu e mais 22 deputados votamos a favor do novo teto de gastos [em 2022], com voto em separado, e o tempo mostrou que infelizmente a gente tinha razão. Hoje, somos prisioneiros do novo teto de gastos. E uma das coisas que a gente precisa fazer é tentar romper esse torniquete. Depois de dois anos, tudo o que está sendo feito é para tentar consertar essa corda que nós pusemos no próprio pescoço, sem necessidade. Nada de pessoal contra o ministro e companheiro Haddad. No PT, lutamos para conservar direitos e alcançar novas conquistas; nunca reduzi-los. O novo teto de gastos, conhecido como arcabouço fiscal, nos meteu numa camisa de força, uma espécie de corda no próprio pescoço. É urgente darmos outro sentido à atual política econômica, marcadamente austera e contracionista.
O presidente Lula está desanimado? Concorda que não é o mesmo dos governos anteriores?
O próprio presidente Lula já disse várias vezes que é uma metamorfose ambulante. É possível que, neste momento, ele esteja com a disposição mais retraída. E que, ao ver as coisas se agravarem, mude de atitude. Nós dependemos muito dessa atitude dele, porque ele é quem tem condição de... Quero dar um exemplo. Quando o plano de matá-lo foi descoberto, se o presidente tivesse ido para a televisão, denunciando, ele daria muito mais força para o avanço dos processos em curso [no STF], inclusive para que não tenha anistia.
“A direita e certos setores da mídia comercial estão entrando na história do etarismo. Começam a comparar o presidente Lula com o Biden, a calcular com quantos anos ele vai concluir um eventual futuro mandato. Eu não vou entrar nessa lenga-lenga. Lula está com toda a disposição de liderar a nossa futura campanha [presidencial], afirma Rui Falcão, ex-presidente do PT
ETARISMO
Mas ele tem o mesmo entusiasmo de antes?
Não posso saber o que passa pela cabeça do Lula, mas ele está ativo e com disposição. Tem reiterado isso. Agora, preste atenção: a direita e certos setores da mídia comercial estão entrando na história do etarismo. Começam a comparar o presidente Lula com [o presidente norte-americano Joe] Biden, a calcular com quantos anos ele vai concluir um eventual futuro mandato. Eu não vou entrar nessa lenga-lenga. Lula está com toda a disposição de liderar a nossa futura campanha [presidencial].
Vamos precisar de alianças, mas o PT e a esquerda não podem se diluir em uma eventual frente ampla. Temos que apresentar um programa avançado, de transformação, inclusive para tentar criar condições para a convocação de uma nova Assembleia Constituinte que enterre a Sexta República e construa uma Sétima República, sem os vícios a que estamos submetidos. Sem eleitoralismo, sem farra de emendas, sem bloqueio do grande capital que não permite que o país avance. Lula está em plenas condições de fazer isso.
Não é legítimo que as pessoas se preocupem com a idade e as condições do presidente? Falar sobre o assunto vai virar um tabu?
Acho lícito e muito bom que as pessoas se preocupem com a saúde dele. Significa carinho, preocupação. Há pessoas que rezam por ele, como quando nos preocupamos com tio, pai.
Mas o que ocorre não é isso, e sim utilizar a idade dele para, por vias transversas, tentar enfraquecê-lo como candidato. É a isso que estou me referindo. É evidente que, embora ele fale que tem energia de 20 anos, 30 anos, e tal, nenhum de nós vai ser eterno. Nem ele vai viver 120 anos. Eu gostaria até que isso acontecesse. Mas são tipos diferentes de preocupação.
Há uma preocupação sobre como será a política brasileira sem a figura do Lula. Ela não é legítima?
O Lula é o maior líder popular que o Brasil já construiu; uma construção coletiva, fruto de uma conjuntura de lutas sociais, sindicais, que permitiram que as qualidades dele avultassem. É por isso que eu digo que a gente precisa fomentar o povo na rua, a luta social, para que a lideranças não surjam só em gabinetes e escritórios. O PT tem que fazer essa política nos seus diretórios, nos territórios que ocupa, porque daí surge muita gente. Não pode fazer política nos anos pares [de eleições]. Aí a gente fica reclamando, "porque os evangélicos, a direita, o bolsonarismo"...Não há espaço vazio na política. Ou você ocupa o território, se integra ao cotidiano da população, ou não só você perde a eleição como também o seu projeto vai sendo diluído, e o partido vai sendo esvaziado com o tempo. Não há partidos eternos. Isso vai ser discutido agora, quando o PT prepara a sucessão da presidente Gleisi (Folha, 10/1/25)