O etanol ainda pode decolar no Brasil?
Expansão do biocombustível foi dificultada por preço controlado da gasolina, mas programa lançado do governo gera expectativas no setor
Esperança de commoditie made in Brazil na metade dos anos 2000, o etanol .se tornou uma realidade no setor energético brasileiro ao longo dos últimos dez anos. Nos momentos de alta da gasolina, como o atual, o combustível é lembrado como alternativa para os carros de passeio.
Feito a partir da cana-de-açúcar, o etanol emite 90% menos dióxido de carbono (CO2) do que a gasolina, levando em consideração o chamado "ciclo de vida", que inclui todas as etapas de produção e sua combustão pelo motor.
Apesar disso, sua expansão enfrentou a oposição de grupos ambientalistas e críticas às condições de trabalho no setor. Mas o fator determinante para que não tenha conquistado maior espaço no mercado foi uma reorientação na política energética do governo.
Em 2007, o então presidente dos EUA, George W. Bush, veio ao Brasil para firmar um acordo de cooperação técnica entre os dois países na área. Na ocasião, o então presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, admitiu à imprensa que teve "uma obsessão com os biocombustíveis" em seu primeiro mandato.
A chegada dos carros flex ao mercado entusiasmou o ex-presidente, que considerava "irreversível" a transformação do etanol em commoditie. Entretanto, após a descoberta das enormes reservas de petróleo no pré-sal brasileiro, o biocombustível perdeu importância na política energética dos governos petistas.
No contexto da crise econômica internacional, o governo estimulou a compra de veículos leves por condições de crédito facilitadas, o que poderia ter ajudado a impulsionar o setor. A medida, no entanto, foi acompanhada pelo controle do preço da gasolina e a posterior redução dos tributos federais incidentes sobre o combustível fóssil.
"Por tabela, o preço do etanol hidratado, concorrente direto da gasolina, também foi controlado, senão o consumidor troca de produto", explica a economista Elizabeth Farina, presidente da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (UNICA).
"O endividamento explodiu e a receita não subia, porque o preço era controlado. Com isso, o setor perdeu capacidade de investimento e produtividade. Houve o fechamento de 80 das 440 usinas instaladas no país, e 67 estão em recuperação de dívida", lamenta.
Cana: principal fonte renovável no Brasil
A conjuntura desfavorável não impediu o setor de aumentar sua participação no abastecimento de combustíveis do Brasil, a qual varia entre 40% e 50% nos veículos que não são movidos a diesel. A taxa é impulsionada pela obrigatoriedade da mistura de etanol anidro (puro) à gasolina, numa faixa que varia entre 18% e 27,5%.
Pelo consumo do biocombustível, o Brasil evitou a emissão de 450 milhões de toneladas de gás carbônico entre 2003 e 2017. A quantidade equivale ao total de emissões do Chile por cinco anos e de Portugal por oito, tendo como referência valores de 2012.
Além disso, a partir do bagaço gerado pelo processamento da cana, uma biomassa, é possível produzir energia, utilizada para alimentar a própria usina.
O excedente é vendido para as redes elétricas e, com essa contribuição, a cana-de-açúcar se tornou a principal fonte de energia renovável, responsável por 17,5% da matriz energética brasileira, superior à fonte hidráulica (12,6%) e atrás apenas de petróleo e derivados (36,5%).
RenovaBio: otimismo para o setor
A expectativa para os próximos anos é bastante positiva no setor, que aprova largamente o programa RenovaBio, instituído em dezembro do ano passado e, atualmente, em fase de regulamentação.
O programa visa ao cumprimento dos compromissos assumidos pelo Brasil no Acordo de Paris, relativos à redução das emissões de gases geradores do efeito estufa.
O objetivo é aumentar a produção e o consumo de biocombustíveis no Brasil - incluindo etanol, biodiesel, biogás e bioquerosene -, a fim de que o país cumpra os compromissos assumidos no Acordo de Paris de redução das emissões de gases de efeito estufa até 2030.
A iniciativa prevê a criação de um mercado de negociação de créditos de descarbonização (CBios). Para participar do programa e ter acréscimos de faturamento expressivos, as usinas de etanol deverão ter boas notas de eficiência energético-ambiental, que serão calculadas pela plataforma RenovaCalc.
Estima-se que o programa poderá destravar investimentos de até 40 bilhões de dólares em aumento de capacidade, tecnologia e produção, além de gerar 750 mil empregos.
"A base do RenovaBio é criar valor econômico para esse produto que, hoje, não é remunerado: a redução de emissão. No fundo, a sociedade subsidia o fóssil. Segundo o Banco Mundial, em até 1 trilhão de dólares por ano", afirma a presidente da UNICA.
"O custo gerado quando se consome diesel ou gasolina é um custo privado muito menor do que o custo social", acrescenta.
Sustentabilidade em xeque?
Por outro lado, o bom desempenho do setor e as perspectivas de expansão acendem um alerta. Afinal, o desenvolvimento dos biocombustíveis sempre foi visto com ressalva por ambientalistas.
Como o aumento da produção implica a ocupação de maior parte das terras agricultáveis no planeta com a plantação de cana ou outras matérias primas dos biocombustíveis, como as oleaginosas, temia-se que esse processo acarretasse uma diminuição da oferta de alimentos.
Diretor técnico da Agência Nacional do Petróleo entre 1998 e 2004, Luiz Augusto Horta é consultor de agências da ONU em temas energéticos. Ele acredita que essa preocupação venha da desinformação sobre o tema.
"A FAO [Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura] tem posição clara sobre o tema: é possível produzir as duas coisas. O planeta tem 13 bilhões de hectares agricultáveis. Estamos usando 10% disso para produzir comida", argumenta.
"A obesidade é, hoje, um problema muito mais epidêmico e grave do que a falta de alimentos. Sem dúvida, ela acontece, mas não decorre da pouca oferta, e sim da falta de recursos para comprar comida. A FAO tem estudado e mostrado isso", complementa.
Horta destaca, ainda, que as condições climáticas do Brasil o colocam em uma condição bastante favorável no setor. Embora os EUA sejam líderes no consumo e na produção de etanol, fabricam o biocombustível a partir do milho, cinco vezes menos eficaz do que a cana.
Desde 2009, o Brasil utiliza um zoneamento agroecológico que separa as áreas de plantio por aptidão da terra e proíbe a plantação de cana em biomas sensíveis. Dos 64 milhões de hectares liberados para cultivo do gênero, 9 milhões são usados hoje.
Com o desenvolvimento do etanol de segunda geração, que já começa a ser posto em prática por algumas empresas que exploram o setor, será possível também utilizar o bagaço e a palha da cana como matéria-prima do biocombustível. Em decorrência, a produção poderá ser aumentada em até 50% sem ampliação da área de cultivo.
Reforma trabalhista
Além da questão ambiental, as condições trabalhistas representam, historicamente, uma preocupação no setor sucroalcooleiro, vide a situação dos chamados boias-frias.
Os especialistas ouvidos pela DW Brasil alegam que a mecanização da colheita, com índices de 85%, praticamente erradicou os casos de trabalho em condições degradantes. A afirmação é endossada pela Procuradoria do Trabalho de Campinas.
Contudo, o procurador Rafael Gomes, do Ministério Público do Trabalho em Araraquara (SP), afirma que novos problemas têm sido observados - entre eles, jornadas de trabalho que superam as 12 horas para os operadores de máquinas e terceirizações que envolvem o aliciamento de trabalhadores.
"Já lidei com casos de 'quinterização' e 'sexterização'", conta o procurador. Em sua visão, a reforma trabalhista irá agravar essas vulnerabilidades.
"No instante da entrada em vigor da reforma, uma usina anunciou que iria suprimir o pagamento das horas de trabalho em percurso, admitindo que isso representaria um impacto de 20% nos salários dos trabalhadores rurais, que já são baixos", conta.
"São lugares em que não há oferta de ônibus, e o fornecimento de transporte pela empresa é condição sem a qual não existe a atividade econômica. Se for esperar que o trabalhador vá por conta própria, ninguém irá aparecer para trabalhar", critica (Terra, 5/6/18)