Ranking de sustentabilidade da Bolsa esbarra em questionamentos ESG
CAPA EVENTO BRASILAGRO ESG
Por Thiago Bethônico
Presença de empresas com problemas socioambientais divide opinião de especialistas.
No fim de janeiro, a B3 publicou o ranking das empresas com melhores pontuações no ISE, o Índice de Sustentabilidade Empresarial da Bolsa de Valores. Pela primeira vez, as notas das companhias que formam a carteira foram divulgadas —inclusive daquelas que participaram do processo, mas não foram selecionadas.
O novo formato é resultado de uma mudança metodológica feita em julho de 2021, que procurou dar mais transparência ao índice. Agora é possível ter acesso não só às organizações que foram excluídas, mas também à pontuação obtida em cada uma das dimensões analisadas.
Das 73 empresas que se inscreveram, 46 tiveram avaliação suficiente para entrar na carteira de 2022. A primeira colocada no ranking é a EDP, do setor elétrico, seguida por Renner, Telefônica do Brasil, CPFL Energia e Natura.
No entanto, nem todas são exatamente uma unanimidade em boas práticas ambientais, sociais e de governança corporativa. Apesar da metodologia mais rigorosa, companhias com histórico ESG questionável ou pertencentes a setores controversos continuam figurando na lista.
Um dos exemplos é a Braskem, que voltou a integrar o ISE neste ano e ocupa a 15ª posição no ranking. A petroquímica está ligada a um desastre ambiental em Maceió, após a exploração de sal-gema provocar o afundamento do solo em diversos bairros da capital alagoana, atingindo cerca de 57 mil pessoas.
Além disso, a companhia esteve envolvida em acusações de corrupção e é controlada pela Novonor —antiga Odebrecht, que ficou associada a escândalos na Operação Lava Jato.
No relatório do índice, é possível ver o desempenho da Braskem nas cinco dimensões avaliadas. A melhor nota recebida pela empresa foi na dimensão governança corporativa e alta gestão (83,67), seguida de capital social (76,61) e meio ambiente (74,55).
A B3 também disponibiliza um documento detalhando as pontuações obtidas em cada subtema. Em combate à corrupção, por exemplo, a petroquímica tirou nota máxima: 100%. Já em direitos humanos e relações com a comunidade, a nota ficou em 86,03%.
Procurada para comentar, a Braskem disse que não iria se manifestar sobre o tema.
Na apresentação do ISE, a B3 ressalta que as notas refletem exclusivamente as respostas autodeclaradas pela companhia. Embora elas tenham que apresentar documentos para subsidiar os questionários, a Bolsa não faz qualquer tipo de auditoria, avaliação qualitativa ou recebe influência de terceiros.
Questionada se a presença de companhias com questões socioambientais no histórico não representa uma contradição em um índice de sustentabilidade, a Bolsa disse que a metodologia do ISE não faz exclusão de setores ou empresas.
Segundo a B3, essa visão ajuda a aprofundar o diagnóstico ESG das companhias, mostrar a evolução dos temas e destacar aquelas que apresentam as melhores práticas.
"Entendemos que não há contradição e que a metodologia é eficaz para o momento atual de desenvolvimento das avaliações sobre os temas ESG, tanto que é adotada por outras bolsas e agências de classificação em todo o mundo", diz texto enviado pela B3.
Além da presença da Braskem, o ISE também incorpora empresas de setores controversos ou poluentes, como é o caso do agronegócio.
O agro é a segunda atividade que mais emite gases de efeito estufa no Brasil (27% do total), sendo que a pecuária responde pela maior parte dessas emissões: 65%.
A Minerva Foods é a representante dos frigoríficos na carteira, ocupando a 44ª posição. A companhia chegou a ser excluída na primeira prévia do indicador, em dezembro, mas retornou após a atualização de dados sobre mudanças climáticas do CDP (Carbon Disclosure Project) —um dos critérios externos para participar do ISE.
A melhor pontuação da Minerva foi em meio ambiente (66,10), seguido de modelo de negócios e inovação (65,95) e governança corporativa (63,75).
Em nota, a empresa afirma que a inserção no ISE pelo segundo ano consecutivo reflete seu compromisso com as melhores práticas ESG. O frigorífico lembra que foi a única companhia do setor de carne bovina a compor a carteira de 2022, e que também integra outro índice verde da Bolsa, o ICO2 (Índice Carbono Eficiente).
"Nos últimos dez anos, a companhia vem adotando iniciativas para uma produção cada vez mais sustentável em toda a cadeia de valor", diz.
A Minerva ainda cita iniciativas adotadas para reduzir as emissões, como o Renove, programa que mede e monitora o balanço de carbono nas propriedades agrícolas de seus parceiros na América do Sul.
Outro setor que marca presença no índice de sustentabilidade da Bolsa é o de aviação, que responde por 3% do total de emissões de gases de efeito estufa no mundo.
A Azul é a única representante na carteira, ocupando a 53ª colocação. A empresa teve os melhores desempenhos nas dimensões de governança (65,03), modelo de negócios e inovação (63,15) e capital social (61,91).
A companhia disse, por nota, que tem o compromisso de alcançar emissões líquidas zero até 2045 e que trabalha com foco numa operação eco-eficiente, por meio de frota mais jovem e com menor consumo de combustível.
"Atualmente a Azul opera com a frota mais eficiente do Brasil e seu programa de transformação de frota é um pilar fundamental para que a companhia atinja suas metas de crescimento sustentável, gerando impactos sociais e ambientais muito positivos", afirmou.
A Azul também destacou que faz parte do programa de compensação e redução de carbono para a aviação internacional da ICAO (Organização da Aviação Civil Internacional).
Fabio Alperowitch, fundador da Fama Investimentos, gestora de fundos com foco em ESG, diz não ver problemas em empresas de setores controversos serem selecionadas para um índice de sustentabilidade.
"Até a Petrobras poderia estar lá, sendo uma empresa de combustíveis fósseis, desde que fosse uma companhia responsável", afirma. A petroleira estava na carteira de 2021, mas, diante das mudanças de metodologia, optou por não participar da nova seleção.
Para ele, o segmento econômico tem menos relevância que as ações sustentáveis que uma empresa pratica.
Contudo, Alperowitch critica a presença de organizações com problemas socioambientais na lista. "Quando um investidor individual —ou até mesmo um institucional que está longe desse debate ESG— vê o ISE, ele entende que aquelas empresas são sustentáveis e têm a chancela da Bolsa", afirma.
"O índice de sustentabilidade deveria ser composto por empresas sustentáveis, não por negócios que estão nesse caminho", acrescenta.
O gestor ressalta a importância histórica do ISE, que foi lançado em 2005, quando o mercado dava pouca importância ao tema. Segundo ele, a nova versão é melhor que as anteriores ao dar mais transparência, aplicar questionários de acordo com o setor e adotar referências externas, como o CDP e o Reprisk (que indica o risco reputacional).
No entanto, a crítica de Alperowitch é com os índices em geral, por ser difícil estabelecer critérios objetivos para analisar questões complexas como o ESG. Para ele, os rankings acabam esvaziando o debate sobre sustentabilidade à medida que se tornam um pódio de melhores empresas, sem haver um olhar mais detalhado.
"Eu não sou contra a existência de rankings, eu sou contra o uso deles indistintamente, como se fossem uma ferramenta universal e eximissem as pessoas de entender outras questões."
Filipe Ferreira, diretor da Comdinheiro, provedora de sistemas de análises do mercado financeiro, diz que a presença de empresas com problemas socioambientais num índice de sustentabilidade pode colocar a metodologia da seleção em xeque.
No entanto, ele avalia que a construção dessas carteiras não é um processo binário, onde existe um bem e um mal. Adotar uma metodologia rigorosa em todos os aspectos ESG, na visão dele, acabaria por esvaziar o indicador e não ajudaria na evolução do mercado.
"Pensando no objetivo final de um índice como esse —e no conceito de ESG—, é preciso ter um modelo que incentive as empresas a melhorar. Às vezes temos que descer do pedestal do mundo perfeito para pensar políticas mais eficientes", afirma.
Segundo Ferreira, a presença da Braskem ilustra bem a questão. Embora a petroquímica tenha controvérsias em seu histórico, ela adota boas iniciativas para resíduos químicos, o que, segundo ele, precisa ser sinalizado positivamente para o mercado.
"Não [defendo] que essas empresas entrem no índice a torto e a direito, mas dar a elas a chance de construírem políticas que melhorem seu processo produtivo —e reflitam isso em um índice— tem seu lado positivo."
Para o diretor, a carteira do ISE não é perfeita, mas mostra o momento incipiente em que o cenário corporativo brasileiro se encontra no ESG.
"O ISE cumpre bem o papel ao dar uma sinalização inicial para o mercado, mas tem que continuar evoluindo, subindo a barra, para incentivar as empresas a progredirem", afirma.
"O ótimo é inimigo do bom, se esperarmos um índice ideal, talvez nunca construiremos esse mercado", acrescenta (Folha de S.Paulo, 27/2/22)
Empresas não sabem se estão indo bem ou mal na agenda ESG
Legenda: Manifestante segura cartaz em protesto durante encontro dos ministros de meio ambiente do G20, que aconteceu em julho de 2021, em Nápoles, sul da Itália - Guglielmo Mangiapane/Reuters
Por Thiago Bethônico
Métricas complexas e ausência de padronização dificultam o acompanhamento de temas sustentáveis.
Não é possível gerenciar aquilo que não é medido. Esse conceito da administração ganhou novo sentido em meio à proliferação de compromissos ESG (ambiental, social e governança, na sigla em inglês).
Com investidores direcionando mais capital para negócios sustentáveis, muitas empresas têm corrido para anunciar suas metas e implementar boas práticas. O desafio, porém, é conseguir medir o desempenho nessa agenda.
Diferentemente das questões financeiras, a sustentabilidade não consegue ser avaliada por meio de indicadores objetivos, como faturamento, margem de lucro e fluxo de caixa.
Uma pesquisa feita pela consultoria Accenture com empresas que relataram mais de US$ 1 bilhão em receita mostrou que a dificuldade em avaliar, relatar e gerenciar o desempenho sustentável é generalizada, o que pode inclusive prejudicar o cumprimento de metas ESG.
Segundo o relatório, apenas 26% das companhias possuem informações claras e confiáveis para monitorar seus objetivos de sustentabilidade.
O levantamento também indica que, embora a maioria (78%) dos executivos esteja buscando entender os riscos ESG em seus negócios, somente 47% definiram as principais métricas e fontes de dados para seus relatórios.
Celso Lemme, professor de finanças e sustentabilidade da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), diz que fazer esse acompanhamento é desafiador, mas houve grandes avanços ao longo dos últimos anos.
Um dos motivos apontados por ele é a disseminação dos sistemas de relato —os chamados "frameworks"— como o GRI (Global Reporting Initiative), o TCFD (Task Force on Climate-Related Financial Disclosures) e o CDP (Carbon Disclosure Project).
"Essa sopa de letrinhas nem sempre é simples de usar, mas é muito útil para dar uma estrutura de informação", afirma o professor, que integra os conselhos do CDP e GRI.
As iniciativas fornecem modelos para as companhias divulgarem suas informações "não-financeiras", como emissões de carbono, gestão de resíduos e relações trabalhistas.
No entanto, a pluralidade de indicadores não necessariamente ajudou a dar mais transparência. Pelo contrário, o excesso de abordagens causou uma polifonia para os investidores e para as próprias empresas.
Tantas métricas levaram o mercado a uma busca por padronização. Em 2020, as quatro grandes firmas de auditoria (Deloitte, PwC, KPMG e EY), chamadas de Big Four, se uniram para criar uma estrutura comum de relatórios ESG.
A medida, liderada pelo International Business Council, braço do Fórum Econômico Mundial, procura incentivar grandes empresas a adotarem os padrões.
Iniciativa semelhante foi anunciada durante a COP26, a conferência do clima da ONU. A Fundação IFRS, responsável pelas normas internacionais de contabilidade corporativa, inaugurou o ISSB (International Sustainability Standards Board), com o objetivo de definir padrões de divulgação sustentável para as empresas. A ideia é ajudar investidores e permitir que as informações sejam comparáveis.
Ricardo Assumpção, diretor-executivo da consultoria Grape ESG, diz que a profusão de modelos adotados gerou confusão no mercado. "Existe hoje uma grande pressão dos investidores para arrumar essa bagunça", afirma.
Segundo ele, a forma como a sustentabilidade é medida atualmente é falha, o que pode ser percebido na discrepância entre as avaliações de agências de rating (classificação).
"Se uma empresa vai bem em um índice, não há garantia nenhuma de que ela será bem avaliada em outro", diz.
Por se tratar de um tema complexo e menos sujeito a indicadores objetivos, o desempenho sustentável de uma companhia fica refém de decisões metodológicas.
Certo índice ESG pode dar mais peso a questões ambientais, enquanto outro valoriza os aspectos de governança. A consequência disso é que a avaliação de uma mesma empresa sofre variações bruscas de um índice para outro.
Um estudo da escola de negócios do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts) avaliou a discrepância entre as maiores agências de ratings ESG do mundo e concluiu que a forma de monitorar o tema é confusa e desbalanceada.
Os pesquisadores descobriram que a correlação entre as notas dadas por organizações como MSCI, Sustainalytics e Refinitiv foi em média 0,61 —indicando um baixo alinhamento entre elas. A escala varia de zero (nenhuma correlação) a um (máxima correlação). Os ratings de crédito da Moody's e da S&P, por exemplo, estão correlacionados em 0,92.
Para Assumpção, iniciativas como o ISSB são positivas, pois facilitam o trabalho das empresas e dos investidores.
"Isso é essencial para conseguirmos comparar a sustentabilidade. Hoje, a sustentabilidade é incomparável no mundo todo —e no Brasil mais ainda", afirma.
Celso Lemme, da UFRJ, também acredita que os esforços de convergência são meritórios, mas faz uma ressalva: padronizar demais pode tirar a essência do ESG.
"Se não há padrão nenhum, as empresas ficam perdidas, mas se o padrão é absoluto vira camisa de força. A métrica não pode ser o alvo, ela é a flecha."
RELATÓRIOS DE SUSTENTABILIDADE REFLETEM POUCO O QUE A EMPRESA FAZ
O professor diz que as empresas estão medindo seus desempenhos em sustentabilidade de forma cada vez melhor e frequente, mas realçando só o que julgam estar indo bem.
Ele compara os relatórios aos currículos profissionais. "Geralmente as pessoas não mentem, dizendo fazer algo que não é verdade, mas dão mais destaque àquilo que fazem de melhor", diz.
Segundo Lemme, é fundamental considerar a materialidade, isto é, os temas que são impactados pela atividade da empresa. "Economia de recursos hídricos, por exemplo, não deve ter o mesmo peso na análise ESG de um banco e de uma empresa de bebidas."
Os exageros em divulgações de sustentabilidade foram abordados em artigo da Harvard Business Review. A publicação argumenta que, embora os relatórios tenham se multiplicado nos últimos 20 anos, as emissões de carbono e os danos ambientais continuaram aumentando, assim como as desigualdades sociais.
"Relatório não é uma proxy [procuração] para o progresso. A medição é, muitas vezes, fora do padrão, incompleta, imprecisa e enganosa", diz o artigo. "Pior ainda, o foco em relatórios pode realmente ser um obstáculo ao progresso [...], desviando a atenção da necessidade real de mudanças de mentalidade, regulamentação e comportamento corporativo", acrescenta.
MÉTRICAS ESG INDICAM PROCESSO, NÃO O IMPACTO
Outro desafio para que uma empresa consiga avaliar seu desempenho sustentável é a ausência de indicadores. Nem todas as questões socioambientais são traduzidas em métricas precisas.
A contribuição de uma companhia para o efeito estufa, por exemplo, pode ser medida pela quantidade de carbono que ela emite. Já os impactos na biodiversidade, por exemplo, não são tão fáceis de monitorar.
Em outros casos, indicadores de processo se confundem com os de impacto, como acontece nas metas de diversidade. Empresas conseguem medir a quantidade de pessoas negras e de mulheres nas equipes, mas não necessariamente capturam o resultado almejado: decisões corporativas que refletem múltiplas perspectivas.
Marcos Rodrigues, sócio da BR Rating, primeira agência brasileira de classificação de risco ESG, concorda que não é fácil para uma empresa saber o seu estágio sustentável. No entanto, ele diz haver formas de se aproximar desse entendimento.
As análises independentes são uma delas. Em vez de responder a um questionário genérico, a companhia passa por uma avaliação aprofundada feita por terceira parte, com auxílio de entrevistas e documentos.
"Com outra companhia avaliando, a empresa não vai divulgar o que ela quer. O greenwashing [propaganda enganosa verde] ocorre, na maioria das vezes, com o uso da informação incorreta ou mentirosa. Ter uma análise independente garante mais transparência", afirma (Folha de S.Paulo, 27/2/22)